Memorial do Convento, José Saramago

Recordemos um pouco de como foi o nosso teatro no Palácio Nacional de Mafra:  



José Saramago

José de Sousa Saramago nasceu em 1922, em Azinhaga, aldeia ao sul de Portugal, numa família de camponeses.

Autodidata, antes de se dedicar exclusivamente à literatura trabalhou como serralheiro, mecânico, desenhista industrial e gerente de produção numa editora.

Iniciou sua atividade literária em 1947, com o romance Terra do Pecado, só voltando a publicar (um livro de poemas) em 1966.

Atuou como crítico literário em revistas e trabalhou no Diário de Lisboa. Em 1975, tornou-se diretor-adjunto do jornal Diário de Notícias. Acuado pela ditadura de Salazar, a partir de 1976 passou a viver de seus escritos, inicialmente como tradutor, depois como autor.

Em 1980, alcança notoriedade com o livro Levantado do Chão, visto hoje como seu primeiro grande romance. Memorial do Convento confirmaria esse sucesso dois anos depois.

Em 1991, publica O Evangelho Segundo Jesus Cristo, livro censurado pelo governo português - o que leva Saramago a exilar-se em Lanzarote, nas Ilhas Canárias (Espanha), onde vive até hoje. Foi ele o primeiro autor de língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998.

Entre seus outros livros estão os romances O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), A Jangada de Pedra (1986), Ensaio sobre a Cegueira (1995) e O Homem Duplicado (2002); a peça teatral In Nomine Dei (1993) e os dois volumes de diários recolhidos nos Cadernos de Lanzarote (1994-7).
 Era uma vez um rei que fez a promessa de levantar um convento em Mafra.
Era uma vez a gente que contruiu esse convento.
Estrutura da obra

A análise de Memorial do Convento permite constatar a existência de duas narrativas simultâneas: uma de carácter histórico – a construção do convento de Mafra decretada po El-Rei D. João V por justus motivos – e outra ficcionada – a construção da passarola que engloba a história de amor entre Baltasar e Blimunda.
A acção principal diz respeito à concretização do plano de D.João V – a edificação do convento. Mas nesta encaixam-se outras acções, constituindo diferentes linhas de acção que se articulam com a primeira.



ACÇÃO

            A análise de Memorial do Convento permite constatar a existência de duas narrativas simultâneas: uma de carácter histórico e outra ficcionada.
            A acção principal é a edificação do convento de Mafra – desejo e promessa de D. João V e a acção secundária é a história de amor entre Blimunda Sete-Luas e Baltasar Sete-Sóis; a construção da passarola (sonho de Bartolomeu de Gusmão).
            Na acção principal encaixam-se outras acções, constituindo diferentes linhas de acção que se articulam com a primeira.

1º linha de acção
A do rei – D. João V
Abrange todas as personagens da família real e relaciona-se com a segunda linha de acção, uma vez que a promessa do rei é que vai possibilitar a construção do convento. Esta linha tem como espaço principal a corte e, depois, o convento, na altura da sua inauguração, no dia do aniversário do rei.
2º linha de acção
A dos construtores do convento
Esta é a linha da acção principal da história, a par da quarta – a que respeita à construção da passarola. Esta segunda linha de acção vai ganhando relevo e une a primeira à terceira: se o convento é obra e promessa do rei, é ao sacrifício dos homens, aqui representados por Baltasar e Blimunda, que ela se deve. Glorificam-se aqui os homens que se sacrificam, passam por dificuldades, mas que também as vencem.
3º linha de acção
A de Baltasar e Blimunda
Nesta linha relata-se uma história de amor e o modo de vida dos portugueses. Baltasar e Blimunda são os construtores da passarola; Baltasar é também, depois, construtor do convento, constituindo-se como paradigma da força que faz mover Portugal – a do povo.
4º linha de acção
A de Bartolomeu Lourenço
Relaciona-se com o sonho e o desejo de construir uma máquina voadora. Articula-se com a primeira e segunda linhas de acção, porque o padre é mediador entre a corte e o povo. Também se enquadra na terceira linha, dado que a construção da passarola resulta da força das vontades que Blimunda tem de recolher para que a passarola voe.

            Verifica-se a existência de um plano ficcional que se cruza com a História, uma vez que a construção da passarola, evento a que a História se refere, acaba por ser ficcionada quando se afirma que se moverá pela força das “vontades” que Blimunda recolhe.
            A construção da passarola é o fio condutor de toda a narrativa pois consegue-se observar quase todos os passos, e até partilhar do entusiasmo das personagens, enquanto que da construção do convento só se sabe as fases da construção. Parece, até, que só a partir do décimo sétimo capítulo é que a passarola cede lugar ao convento. Na realidade, é a construção da máquina que conduz a narrativa e é ela que materializa o sonho dos seus construtores e lhes vai permitir a fuga de um mundo dominado pela injustiça e pela prepotência que caracteriza a política vigente.

            As sequências narrativas, que fazem parte da acção, podem surgir articuladas de três maneiras diferentes:
 à Encadeamento: por exemplo, o desenrolar da relação amorosa entre Blimunda e Baltasar, a partir do momento em que se conhecem no auto-de-fé, onde a mãe de Blimunda é condenada, até ao reencontro do casal no final da acção, na altura em que Baltasar está a ser queimado na fogueira da Inquisição.
à Encaixe: por exemplo, as histórias de vida que Francisco Marques, José Pequeno, Joaquim da Rocha, Manuel Milho, João Anes, Julião Mau-tempo e Baltasar Mateus contam uns aos outros (Cap. XVIII), quando estes se encontram longe dos seus lares a trabalhar na construção do convento.
à Alternância: por exemplo, a história de Manuel Milho sobre uma rainha e um ermitão (Cap. XIX) é contada por partes, à noite, dando lugar à narração de outros eventos.


ESPAÇO

Espaço físico (espaço real, onde os acontecimentos ocorrem, confere verosimilhança à história narrada):

 à Espaço geográfico – Lisboa e Mafra são os espaços fulcrais, até porque é aqui que se movimentam as personagens principais. Dentro destes espaços, destacam-se, nomeadamente, o Terreiro do Paço (local que retrata a vida na corte), o Rossio (onde se realiza, por exemplo, os autos-de-fé), S. Sebastião da Pedreira (localidade situada nos arredores de Lisboa, onde decorre a construção da “passarola”, na quinta do duque de Aveiro), a “ilha da Madeira” (vale onde os trabalhadores do convento se alojam). Faz-se ainda referência a Évora, Montemor, Pegões, Aldegalega (locais por onde Baltasar passa, depois da guerra, no seu percurso até chegar a Lisboa); à serra do Barregudo, ao Monte Junto, ao Monte Achique, a Pinheiro de Loures, a Pêro Pinheiro (onde os homens vão buscar a gigantesca pedra para o convento), a Cheleiros, Torres Vedras, Leiria, à região do Algarve, Alentejo e Entre-Douro-e-Minho, etc.
à Espaço interior – Palácio Real (Lisboa), a albegoaria da quinta do duque de Aveiro (arredores de Lisboa), a casa dos pais de Baltasar (Mafra) …
à Espaço exterior – ruas/praças, o Terreiro do Paço, o Rossio, Remolares, S. Roque, o morro das Taipas, Valverde, o vale da “ilha da Madeira”…

Espaço social (ambiente social vivido pelas personagens): MAFRA e LISBOA

Ø  A vida na corte, com a apresentação do séquito real, do vestuário das personagens, das vénias protocolares, do ritual das relações entre o rei e a rainha e todos aqueles que frequentam o paço, sobretudo o clero (Cap. I)
Ø  Diversas procissões, nomeadamente, a de penitência pela altura da Quaresma (Cap. III), a dos autos-de-fé (Cap. V e XXV); a do Corpo de Deus em Junho (Cap. XIII); que atestam a influência da religião na sociedade;
Ø  O baptizado da princesa Maria Bárbara no dia da Nossa Senhora do Ó (VII)
Ø  A tourada em Lisboa, no Terreiro do Paço (IX);
Ø  Os festejos da inauguração e da bênção da primeira pedra do convento de Mafra (XII);
Ø  As lições de música da infanta Maria Bárbara ministradas por Domenico Scarlatti (XVI)
Ø  A epidemia de cólera e febre-amarela que dizima o povo (XV)
Ø  O cortejo nupcial que retrata os casamentos da infanta Maria Bárbara e do príncipe D. José com o príncipe e infanta espanhóis (XXII);
Ø  Sagração, em 1730, do convento de Mafra, apesar de ainda não concluídas as obras (XXIV) …
            O narrador tem preferência por locais onde se movem grandes aglomerados populares, na medida em que estes permitem evidenciar as disparidades sociais, a exploração e a crueldade a que o povo estava sujeito.
            Pelo contrário, os ambientes das classes privilegiadas surgem em menor número e, não raro, são apresentados num tom irónico como forma de criticar aspectos políticos, económicos e religiosos de uma sociedade, onde uma minoria tem tudo e a maioria nada tem.

Espaço psicológico (vivências íntimas, pensamentos, sonhos, estados de espírito, memórias, reflexões… das personagens e que caracterizam o ambiente a elas associado):

Ø  O sonho – a rainha sonha diversas vezes com o cunhado, D. Francisco. Ao longo do romance, são descritos com alguma insistência os sonhos de diversas personagens, dando conta dos seus mais íntimos desejos, ansiedades e inquietações…
Ø  A imaginação – por exemplo, a peregrinação em busca de Baltasar, durante nove anos, Quantas vezes imaginou Blimunda que estando sentada na praça de uma vila, a pedir esmola, um homem se aproximaria… (Cap. XXV).
Ø  A memória – Quando Baltasar, por exemplo, relembra o momento em que perdeu a sua mão esquerda na guerra (VIII)
Ø  A reflexão – nomeadamente, a conversa entre a infanta D. Maria Bárbara e sua mãe durante o cortejo nupcial (XXII)

TEMPO

Tempo histórico (época ou período da História em que se desenrolam as sequências narrativas):
A acção passa-se no início do século XVIII (1711 – 1739).

Tempo da diegese (tempo durante o qual a acção se desenrola, segundo uma ordenação cronológica e em que surgem marcas objectivas da passagem das horas, dias, meses, anos…):
1711 – 1739. Ao longo do romance, as referências temporais são escassas e, muitas vezes, deduzidas. O crescimento e/ou envelhecimento das personagens também nos dá conta da passagem do tempo.

Ø  Chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje (I) – deduz-se que a acção tem início em 1711, pois o casamento real aconteceu dois anos antes, em 1709.
Ø  Apenas há seis anos  aconteceu, em 1705(II) – confirma 1711 focado anteriormente;
Tempo do discurso (modo como o narrador conta os acontecimentos, podendo elaborar o seu discurso segundo uma frequência, ordem e ritmo temporais diferentes):

Frequência temporal:
à Discurso singulativo – o narrador conta apenas uma vez o que aconteceu uma só vez.
à Discurso repetitivo – o narrador conta várias vezes o que aconteceu apenas uma vez.
à Discurso iterativo – o narrador conta uma vez o que aconteceu várias vezes

Ordem temporal:
à O narrador conta no presente acontecimentos já passados – analepseà anisocronia temporal
à O narrador antecipa acontecimentos futuros – prolepse à anisocronia temporal
à O narrador segue uma ordem cronológica dos eventos – ordem linear à isocronia temporal.



Ritmo temporal:
à O tempo da diegese pode ser maior do que o do discurso – anisocronia temporal (o narrador omite (elipse) ou sumaria o que aconteceu em determinado período temporal)
à O tempo da diegese pode ser menor do que o do discurso – anisocronia temporal (o narrador procede a descrições, divagações, reflexões, pausas narrativas)
àO tempo da diegese pode ser idêntico ao do discurso – isocronia temporal (exemplo: diálogos).

      No “Memorial do Convento” o narrador manipula o tempo a seu belo prazer mas segue uma ordem cronológica linear havendo, por vezes, algumas anisocronias, sobretudo prolepses (antecipação de acontecimentos futuros) que reflectem o seu afastamento temporal da intriga:

Ø  O número de filhos bastardos de D. João V (IX)
Ø  A morte do sobrinho de Baltasar (X)
Ø  A morte do infante D. Pedro (X)
Ø  A morte da mãe de Baltasar (XII)
Ø  A morte de Manuela Xavier e de Álvaro Diogo (XVII e XXIII, respectivamente)

            Da mesma forma, adoptando uma atitude distanciada e, não raro, irónica, o narrado tece comentários e comparações entre épocas históricas diferentes, que marcam a distância entre o tempo da diegese e o do discurso (prolepses).

Ø  Alusão à extinção dos autos-de-fé (V)
Ø  A referência às cores da bandeira portuguesa e à implantação da República (XII)
Ø  A menção à cor carmesim (XII)
Ø  A alusão à revolução do 25 de Abril (XIII)
Ø  A indicação do número de frades instalados no convento por altura das invasões francesas (XVII)
Ø  A referência ao cinema e aos aviões (XVII)
Ø  A alusão a Fernando Pessoa (XVIII)
            O distanciamento do narrador relativamente ao tempo da história é, ainda, visível quando este interpela directamente o narratário, esclarece termos que caíram em desuso e quando simula a voz de um cicerone (guia os visitantes do convento de Mafra (XIX)), detectando-se aqui a oposição entre dois tempos diferentes, com o intuito de corrigir a História através da lembrança daqueles homens verdadeiros e dos quais não há registo histórico oficial.
            É de salientar que o narrador tem consciência do desfasamento entre o tempo da história e o da escrita. Com isso pretende lembrar e enaltecer os homens/heróis que a História quase sempre esquece, através da oposição entre épocas distintas Vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz (XIX).
Há momentos em que o narrador recua no tempo diegético para contar acontecimentos situados num passado, mais ou menos distante, que explicam determinados aspectos da acção no presente (analepses):

Ø  Desejo antigo dos franciscanos terem um convento em Mafra (II)
Ø  A língua portuguesa ser familiar a Scarlatti há já alguns anos (XIV)
Ø  O que aconteceu ao cravo de Scarlatti que se encontrava na quinta do duque de Aveiro (XVI)

            No último capítulo há um salto de 9 anos no tempo da diegese em que o narrador sumaria em poucas páginas o que aconteceu durante este período de tempo. Nesta elipse temporal, o narrador cinge-se praticamente à peregrinação incessante de Blimunda e ao (re)encontro de Baltasar, 1739, desde o seu desaparecimento em 1730, omitindo o que de supérfluo para a acção se passou durante estes anos.

Tempo psicológico (tempo subjectivo, relacionado com as emoções, a problemática existencial das personagens, ou seja, a forma como estas sentem a passagem do tempo, vivendo momentos felizes e/ou infelizes):
No percurso até Espanha, Maria Bárbara vai observando o que a rodeia e, a partir daí, medita sobre vários assuntos, nomeadamente sobre o facto de nunca ter visto o convento erigido em honra do seu nascimento (XXII).

Linguagem e estilo.
Em Memorial do convento, encontramos uma linguagem e um estilo peculiares, um afastamento às normas tradicionais de pontuação, sobretudo no que respeita ao discurso direto. O narrador conta a história reproduzindo as falas das personagens, num discurso próximo da oralidade, como se estivesse junto de nós, implicando o narratário na sua "conversa" fliuda e mordaz. Repare que não se verifica a mudança de linha no discurso direto, não há o recurso a sinais gráficos como os dois pontos e o  travessão, aspas ou itálico. A construção da pausa efectua-se através do uso da vírgula e de letra maiúscula. As frases de tipo interrogativo também terminam com vírgula, mas são fáceis de distinguir, até porque, por vezes, são precedidas do verbo perguntar e seguidas do verbo responder.
 A pontuação de Memorial do convento é uma marca do estilo do autor. Alterá-la seria mutilar o texto, privá-lo de um dos traços que o caracterizam e que o tornam sui generis.




Visão crítica

Desde o início que o Memorial do Convento se apresenta como uma crítica cheia de ironia e sarcasmo à furtuna do rei e de alguns nobres por oposição à extrema pobreza do povo. «Esta cidade, mais que todas, é uma boca que mastiga de sobejo para um lado e de escasso para o outro»; »A tropa andava descalça e rota, roubava os lavradores».
O adultério e a corrupção dos costumes são factores de sátira ao longo da obra. Critica a mulher porque «entre duas igrejas, foi encontrar-se com um homem.»; critica «uns tantos maridos cucos» e não perdoa os frades que «içam as mulheres para dentro das celas e com elas se gozam»; não lhe escapam os nobres e o próprio Rei, até porque este considera que as freiras o recebem «nas suas camas», nomeadamente a madre Paula de Odivelas.
Em Memorial do Convento, José saramago apresenta uma caricatura da sociedade portuguesa da época de D. João V, revelando-se antimonárquico e com um humanismo fechado à transcendência, bastante angustiado e pessimista. Nas questões religiosas, não só usa a ironia, como também se revela frontal nas apreciações à Inquisição e aos santos que a ela se ligaram como S.Domingos e Santo Inácio, considerados «ibéricos e sombrios, logo demoníacos, se não é isto ofender o demónio». Esta acusação resulta de toda a imagem histórica dos tempos inquisitoriais e das práticas então havidas. Há uma constante denúncia da Inquisição e dos seus métodos e uma crítica às pessoas que dançam em volta das fogueiras onde se queimaram os condenados.
A sátira estende-se a Mafra e à situação dos trabalhadores; à atitude do Rei em obrigar todo o homem válido a trabalhar no convento; aos príncipes, como D.Francisco, que se entretém a «espingardear» os marinheiros ou quer seduzir a rainha, sua cunhada, e tomar o trono.