Felizmente Há Luar, Luís de Sttau Monteiro

Luís de Sttau Monteiro

Biografia

 

Nasceu a 3 de Abril de 1926 em Lisboa, cidade onde viria a morrer a 23 de Julho de 1993. Era filho de Armindo Rodrigues de Sttau Monteiro e de Lúcia Rebelo Cancela Infante de Lacerda.
Com 10 anos de idade mudou-se para Londres com seu pai, embaixador de Portugal. Contudo, em 1943 este último é demitido do seu cargo por Salazar o que obriga pai e filho a regressarem a Portugal.
Já em Lisboa, licenciou-se em Direito, que exerceu por um curto período de tempo, dedicando-se depois ao jornalismo. A sua estadia em Inglaterra, durante a juventude, pô-lo em contacto com alguns movimentos de vanguarda da literatura anglo-saxónica. Na sua obra narrativa retrata ironicamente certos estratos da burguesia lisboeta e aspetos da sociedade portuguesa sua contemporânea.
Destacou-se, sobretudo, como dramaturgo, nomeadamente com Felizmente há Luar! (1961), peça que, sob influência do teatro de Brecht e recuperando acontecimentos da anterior história portuguesa, procurava fazer uma denúncia da situação sua sociedade atual. Esta peça foi publicada em 1961, tendo sido galardoada com o Grande Prémio de Teatro. A sua representação foi, no entanto, proibida pela censura.
Só em 1978 após a Revolução do 25 de Abril, a célebre peça foi apresentada nos palcos nacionais no Teatro Nacional.














Modo dramático
A palavra teatro significa literalmente o lugar de onde se olha. O teatro é um espetáculo: como tal, requer a presença física de atores, representando para um público, dando vida a um texto através de palavras proferidas em cena. O texto de teatro é concebido para ser representado: ler uma obra de teatro impõe ter em conta como será representada. A peça de teatro não se reduz à linguagem verbal; comunica informações e produz efeitos através de todas as componentes do espetáculo. Ao texto dramático (que fixa o discurso das personagens) junta-se, no momento da representação, elementos visuais ( gestos, objetos, cenários, luzes...) e sonoros ( intonações, sons, música). O autor dramático escreve um texto com vista à representação, deixando sempre uma margem de liberdade ao encenador e aos atores que se apropriam do texto para o fazer reviver em cena. Por isso, ler um texto de teatro não é o mesmo que vê-lo representado, sendo essencial para a sua leitura descodificar as informações contidas nas didascálias, que fazem parte integrante do texto dramático, e interpretar os sentidos múltiplos ou ambíguos atribuídos ás diferentes personagens, bem como as relações que estas mantêm entre si.


 Texto principal e didascálico

O texto dramático é constituído por dois tipos de texto: o texto principal, constituído pelas falas das personagens e o texto didascálico ou secundário cujo objetivo é fornecer ao leitor a listagem inicial das personagens, a distribuição das falas pelas diferentes personagens, a divisão do texto em atos e cenas, as indicações sobre a posição que cada personagem deve assumir em palco, os seus gestos, o tom de voz, a expressão do rosto, o cenário, o guarda-roupa, a iluminação, os adereços de cena, enfim, todas as informações e indicações pensadas pelo autor para a leitura/representação da peça.
Sttau Monteiro fornece muitos elementos de texto secundário. Isto porque presumivelmente sabia que, apesar de situar a ação do seu texto no século XIX, não enganaria a censura, como não enganou, e a sua peça não seria representada. Deste modo, através de um texto de "margem esquerda", faz ouvir a sua voz, propondo uma determinada interpretação, ao encenar abundantemente a leitura do seu texto. Algumas indicações didascálicas, logo na listagem de personagens, fornecem uma " arrumação" de papéis, como podemos verificar no exemplo a seguir:


   
 As indicações são bastante cuidadosas no que diz respeito:

· Às atitudes das personagens  
                  - " A pergunta é acompanhada dum gesto que revela a impotência da personagem perante o problema em causa. Este gesto é francamente "representado". " (p.15)

· À iluminação
               - " Ao abrir o pano a cena está às escuras, encontrando-se uma única personagem intensamente iluminada, ao centro e à frente do palco" (p.15)

· Ao cenário e adereços de cena
               - " De pé e sentadas, várias figuras populares conversam. Algumas dormem estendidas no chão. Uma velha, sentada num caixote, cata piolhos a uma rapariga." (p.16)

· Ao som
               - " Começa a ouvir-se, ao longe, o ruído dos tambores." (p.16
Categorias da narrativa 


Tempo:

Tempo histórico ou tempo real (século XIX - 1817)

·       Invasões francesas (desde 1807): rei no Brasil;

·       Ajuda pedida aos ingleses (Beresford);


·       Regime absolutista;



·       Situação económica portuguesa má: dinheiro ia para a corte no Brasil;

·       Regência, influenciada por Beresford (símbolo do poder britânico em Portugal);


·       Primeiros movimentos liberais (1817), com a conspiração abortada de Gomes Freire;


·     25 De Maio de 1817 – prisão de Gomes Freire; 18 de Outubro de 1817 – enforcado, datas    condensadas em dois dias na peça (tempo de acção dramática);


·     Governadores viam na revolução a destruição da estrutura tradicional do Reino e a supressão dos privilégios das classes favorecidas;


·       O povo via na revolução a solução para a situação em que se encontrava;



·       Revolução liberal de 1820;

·       Implantação do liberalismo em 1834, com o acordo de Évora-Monte.




Espaço


  • Espaço físico: a acção desenrola-se em vários locais, tanto exteriores como interiores, mas estes sem indicações cénicas;


  • Espaço social: os diferentes espaços sociais são distinguidos através da linguagem das personagens e do seu vestuário;







  
 A Acção  


A obra recria, em dois actos, a tentativa frustrada de revolta liberal de Outubro de 1817, reprimida pelo poder absolutista do regime de Beresford e Miguel Forjaz, com o apoio da Igreja. 
Ao mesmo tempo chama a atenção para as injustiças, a repressão e as perseguições políticas no tempo de Salazar, nos anos 60 do século XX – tempo da escrita (paralelismo entre 2 épocas: o século XIX – 1817 – tempo da história; e o século XX – 1961 – tempo da escrita). 

A acção centra-se na figura do general Gomes Freire de Andrade e da sua execução: 

 – da prisão à fogueira, com descrições dos governadores do Reino; 

 – da revolta desesperada e impotente da sua esposa e da resignação do povo que “a miséria, o medo, a ignorância” dominam. Gomes Freire de Andrade “está  sempre presente embora nunca apareça” (didascália inicial) e, mesmo ausente, condiciona a estrutura interna da peça e o comportamento de todas as outras personagens. 

Na acção desta peça, há a destacar o seguinte: 

– a defesa da liberdade e da justiça, atitude de rebeldia, constitui a “hybris” (desafio); 

– Como consequência, a prisão dos conspiradores provocará o sofrimento (“pathos”) das personagens e despertará a compaixão do espectador; 

– O crescendo trágico, representado pelas diversas tentativas desesperadas para obter o perdão, acabará, em “clímax”, com a execução pública do general Gomes Freire e dos restantes presos. 

– Este desfecho trágico conduz a uma reflexão purificadora (“cathársis”) que os opressores pretendiam dissuasora, mas que despertou os oprimidos para os valores da liberdade e da justiça. 


Personagens:


Gomes Freire D'Andrade - personalidade carismática e de prestígio, admirada pelo povo, desperta ódios e inveja nos poderosos, opõe-se à presença inglesa em Portugal e à ausência do rei. Luta pela liberdade. 

Matilde de Melo - " a companheira de todas as horas", corajosa, exprime romanticamente o amor; reage violentamente perante o ódio e as injustiças; afirma o valor da sinceridade; desmascara o interesse, a hipocrisia; ora desanima, ora se enfurece, ora se revolta, mas luta sempre.


Opressores:


D. Miguel Forjaz - prepotente, corrompido pelo poder, vingativo. 

Beresford - poderoso, mercenário, interesseiro, calculista, trocista, sarcástico general inglês, severo e disciplinador; Mandou matar Gomes Freire D'Andrade.

Principal Sousa - fanático, corrompido pelo poder, eclesiástico.


Os Delatores:


Vicente - demagogo, sarcástico, falso humanitarista, movido pelo interesse da recompensa material, adulador no momento oportuno, hipócrita, despreza a sua origem e o seu passado, capaz de recorrer à traição para ser promovido socialmente. 

Andrade Corvo - Capitão do exército, mau oficial, ignorante, pedreiro-livre (ex-maçon), traidor, desonesto, corrupto, denunciante, interesseiro, oportunista.

Morais Sarmento- Capitão do exército, ex-membro da maçonaria, traidor, preocupado com a opinião alheia, desonesto, corrupto, denunciante, interesseiro, ambicioso. 


Povo:


Manuel - " o mais consciente dos populares", andrajosamente vestido; assume algum protagonismo por dar início aos dois atos; denuncia a opressão a que o povo tem estado sujeito e a incapacidade de conseguir a libertação e sair da miséria em que se encontra.

Antigo Soldado – antigo militar, experiente, alegre, contador de histórias passadas.

Rita – mulher sensível, fraterna, solidária, apaixonada pelo marido.

Populares – pobres, miseráveis andrajosos.


Os amigos:

Frei Diogo – honesto, fiel, solidário, caracter de elevada espiritualidade. 

Sousa Falcão - " o inseparável amigo", sofre junto de Matilde perante a condenação do general, assume os mesmos ideias de justiça e de liberdade, mas não teve a coragem daquele.





Servindo-se de uma metáfora (século XIX) para atingir o presente (século XX), Felizmente Há Luar! revela uma dupla intenção crítica: à sociedade oitocentista (1817), feita de uma forma clara e bem explícita, e à sociedade da época de 60 (1961), feita de uma forma camuflada, através da técnica de distanciação. É com ela que Sttau Monteiro obriga o leitor-espectador a analisar e a refletir sobre a situação política, social, económica e cultural do seu país, nomeadamente sobre o regime opressivo vigente que se fazia notar através das injustiças, das condenações e das torturas de todos aqueles que não comungavam das ideias salazaristas. É notória a preocupação do autor em despertar as consciências, levando o espectador a ser um agente de mudança, que reage criticamente e que toma decisões.



Eis um quadro exemplificativo das duas épocas, tendo em conta as duas classes que se apresentam dicotomicamente: o povo e a classe governante.
                                                                           

Tentativa  de implantação do regime liberal em Portugal

- Primeiro quartel do século XIX
A ditadura salazarista


- Década de 60 (século XX)

O Povo


As figuras populares vivem em péssimas condições (“dormem estendidas no chão”; “uma velha, sentada num caixote, cata piolhos a uma rapariga nova”; Manuel anda “andrajosamente vestido”)


Idêntica situação se verifica no país

Manuel, símbolo da consciência popular, tenta participar numa conspiração destinada a romper com o regime vigente


Durante a ditadura salazarista houve também exemplos de antifascistas que sempre desejaram a liberdade, apesar da forte repressão


Denunciantes hipócritas e sem escrúpulos que tentam impedir a união popular em torno do general Gomes Freire de Andrade (Vicente, Andrade Corvo e Morais Sarmento)


Dentro das camadas populares também havia indivíduos que compactuavam com o regime opressor, denunciando elementos da mesma classe, a fim de obterem determinados benefícios


Dois polícias (“iguais a tantos outros”) que tentam dispersarem o povo

A polícia e a PIDE, ao serviço do regime, através da repressão, conseguiam impedir a coesão nas camadas populares

As classes dominantes que exploravam e oprimiam o Povo


Elementos constituintes do Governo:
. Marechal Beresford, um inglês
. Principal Sousa, um padre
. D. Miguel Pereira Forjaz, um nobre

A mesma trindade surge a explorar o povo

Apesar de diferentes, unem-se para sobreviver e manter os seus privilégios, nem que para isso seja necessário matar


Aqui reside a função da PIDE, ao serviço do Governo

Apesar da ausência de provas para condenar Gomes Freire de Andrade, aniquilam-no


O mesmo sucede, pois o grande objectivo era silenciar todos os indivíduos “perigosos” ao regime

Mas


A força de Matilde, aquando da imolação de Gomes
 Freire de Andrade, serve de estímulo à revolta contra a tirania dos governantes (“Julguei que era o fim e afinal é o princípio.”)


As sucessivas condenações e execuções intensificam a vontade de lutar nas classes dos explorados



Este paralelismo é também visível entre as personagens  intervenientes na peça e individualidades do século XX, década de 60.
Assim:


Gomes Freire e os outros onze condenados

General Humberto Delgado e os outros presos políticos


Principal Sousa


Cardeal Cerejeira  e a posição da igreja em Portugal


Beresford


Influência / ajuda estrangeira ao regime, particularmente a inglesa, que tinha interesses económicos, mesmo consciente do regime ditatorial


D. Miguel Pereira Forjaz


A burguesia dominadora que deseja manter o poder económico e social


Vicente / Andrade Corvo / Morais Sarmento


Os delatores ou “bufos” que, em geral, melhoram a sua condição social através da denúncia


Os dois polícias


A polícia e a PIDE

Matilde


As mães, esposas, irmãs dos presos políticos que, lentamente, vão tomando consciência da situação política e que hesitam  entre salvar o familiar ou defender o povo


Manuel / Rita / Antigo Soldado / Outros populares


As pessoas que acreditam em Humberto delgado, mas que não intervêm e são marcadas pelo desespero


Sousa Falcão


O amigo do preso político que, mesmo consciente da situação, não ousa intervir por medo de represálias


Frei Diogo de Melo


A parte da igreja que está consciente da situação (grupo da Tribuna Livre, 1968)





 Aspetos simbólicos


1 – A saia verde
-A saia é uma peça feminina e o verde está conotado com a esperança, traduzindo uma sensação de repouso, envolvente e refrescante. A sai foi uma prenda comprada em Paris (terra da liberdade), no Inverno, com o dinheiro da venda de duas medalhas;
- cor que conota o amor pelo seu “companheiro de todas as horas” e a esperança de que a sua morte possa dar lugar á vida e á renovação.
- Ao escolher aquela saia para esperar o companheiro após a morte, destaca a “alegria” do reencontro (“agora, que se acabaram as batalhas, vem apertar-me contra o peito”).
   
2 - O título / a luz / a noite / o luar
O título surge por duas vezes ao longo da peça, inserido na fala das personagens:

- D. Miguel salienta o efeito dissuasor que aquelas execuções poderão exercer sobre todos os que discutem as ordens dos Governadores.
Esta primeira referência ao título da peça, colocada na fala do Governador, está relacionada com o desejo expresso de garantir a eficácia desta execução pública: a noite é mais assustadora, as chamas seriam visíveis de vários pontos da cidade e o luar atrairia as pessoas à rua para assistirem ao castigo, que se pretendia exemplar.

- Na altura da execução, as últimas palavras de Matilde, “companheira de todas as horas” do General Gomes Freire, são de coragem e estímulo para que o Povo se revolte contra a tirania dos governantes.

A luz, simbolicamente, está associada à vida, à saúde, à felicidade, enquanto a noite e as trevas se associam ao mal, à infelicidade, ao castigo, à perdição e à morte. Na linguagem e nos ritos maçónicos, após ter participado de olhos vendados em alguns rituais, após prestar juramento, o neófito poderia “receber a luz”, o que significava ser admitido...

A lua, simbolicamente, por estar privada de luz própria, na dependência do Sol, e por atravessar fases, mudando de forma, representa a dependência, a periodicidade e a renovação. A lua é, pois, símbolo de transformação e de crescimento.
A lua é ainda considerada como “o primeiro morto”, dado que durante três noites em cada ciclo lunar ela está desaparecida, como morta; depois reaparece e vai crescendo em tamanho e em luz...Ao acreditar na vida para além da morte, o homem vê na lua o símbolo desta passagem da vida para a morte e da morte para a vida...
Por isso, na peça, nestes dois momentos em que se faz referência direta ao título, a afirmação de que “felizmente há luar” pode indiciar duas perspetivas de análise e de posicionamento das personagens:
- As forças das trevas, do obscurantismo, do anti-humanismo utilizam, paradoxalmente, o lume (fonte de luz e de calor) para “purificar a sociedade” ( a Inquisição considerava a fogueira como fonte e forma de purificação).
- Se a luz é redentora, o luar poderá simbolizar a caminhada da sociedade em direção à redenção, em busca da luz e liberdade...
Assim, dado que o luar permitirá que as pessoas possam sair de suas casas (ajudando a vencer o medo e a insegurança, na noite da cidade), quanto maior for a assistência, isso significará:
- para uns, que mais pessoas ficarão “avisadas” e o efeito dissuasor será maior;
- para outros, que mais pessoas poderão um dia seguir essa luz e lutar pela liberdade.
3 – A fogueira / o lume

Após a prisão do General, num diálogo de tom “profético” e com “voz triste” (segundo a didascália), o Antigo Soldado, atormentado, afirma: “Prenderam o general... Para nós, a noite ficou ainda mais escura...”. A resposta ambígua do primeiro Popular pode assumir também um carácter de profecia e de esperança: “É por pouco tempo, amigo. Espera pelo clarão das fogueiras...”
Matilde, ao afirmar que aquela fogueira de S. Julião da Barra ainda havia de “incendiar esta terra!”, mostra que a chama se mantém viva e que a liberdade há-de chegar.